domingo, 19 de março de 2017

O Apartamento

Vou me arriscar aqui a falar de um assunto que pouco entendo: cinema. Então, perdoem-me os cinéfilos caso eu fale alguma besteira. Porque o mais importante aqui não é a precisão dos conceitos e termos utilizados, mas as emoções, foco principal deste blog.


O filme iraniano “O Apartamento” ganhou o Oscar 2017 como melhor filme estrangeiro. Para nós, acostumados aos filmes Hollywodianos, poderíamos achar que é um filme monótono. Talvez muitos durmam antes de chegar ao final. Mas quem disse que toda produção artística ou cultural tem que ser legal? Para ser considerada uma obra de arte, de fato, penso que o produto cultural deve nos levar a uma reflexão, mexer com a profundidade dos nossos sentidos, direções e posicionamento sobre o mundo.

“O Apartamento” é um filme assim. Que revela com sutileza as diferenças e complexidades culturais do Irã frente à sociedade ocidental, principalmente com relação ao lugar da mulher e ao tratamento dado a ela na sociedade. No filme, o personagem Emad (Shahab Hosseini) é um professor e ator amador, que se vê obrigado a buscar um novo apartamento depois que o edifício em que morava quase desabou. Mas quando consegue emprestado de um amigo outro lugar para ficar, a esposa Rana (Taraneh Alidoosti) é estuprada e violentada brutalmente por um homem desconhecido. Numa sociedade em que a honra é vital para o homem, o marido sente-se tão violentado quanto à própria esposa e busca vingança.

Pois bem, inicialmente fiquei mesmo presa a seguir a trama com atenção procurando entender o silêncio que muitas vezes diz tudo no filme, como o estupro acontecido, mas que nunca é pronunciado; as metáforas utilizadas, a casa desabando, as rachaduras na parede representando o relacionamento do casal; as contradições do protagonista, que tenta ser moderno na sua vida profissional, mas continua arraigado às tradições e ao conceito de honra masculina acima dos sentimentos de sua mulher.


Mas depois de digerir o filme por um ou dois dias, comecei a focar não mais nas diferenças entre as nossas sociedades, mas nas semelhanças. No machismo que ainda permeia fortemente a nossa sociedade. Mesmo com todos os avanços e conquistas femininas, uma mulher quando é estuprada é muitas vezes responsabilizada. Se não criminalmente, pelas falas maldosas das pessoas que comentam sobre os trajes curtos, sobre a hora da noite, sobre a conduta indecente, ou que “dava mole” para todo mundo.


Indo mais a fundo, vamos ao caso recente que teve repercussão nacional e internacional de Eliza Samudio, que possivelmente foi estrangulada, morta, esquartejada e seus restos mortais dados a comer por cães da raça Rottweiler. Eliza teve um filho do então famoso jogador de futebol, goleiro Bruno. E sua morte violenta e trágica, ao que tudo indica, ocorreu porque ela exigiu reconhecimento de paternidade e pensão do jogador. E quantas pessoas disseram: “Também, foi dar o golpe da barriga, é isso que dá!”. Como se a atitude da moça justificasse sua morte trágica e brutal. Como se ela tivesse feito o filho sozinha e o homem não tivesse a responsabilidade de evitar. “Ah, mas mulher quando quer, dá um jeito de fazer o filho e dar o golpe...”, dizem. Mas não existe camisinha? “Ah, o pobre homem estava bêbado demais para se lembrar”. Ou “excitado demais”. Ou “quem tem que se prevenir é a mulher, isso é papel dela”. Barbaridades que se dizem não só no Brasil, mas mundo afora.   

Mudando o ângulo do filme, pensando agora no relacionamento conjugal, no afastamento do homem quando sua mulher mais precisa, talvez um misto de repulsa por ter sido tocada por outro homem e ao mesmo tempo por considerar sua dor maior do que a da própria vítima. Será que isso também não acontece por aqui num caso de estupro? Ou até mesmo de uma enfermidade, como câncer, depressão, tetraplegia ou qualquer outro infortúnio da vida? Às vezes até mesmo a chegada de um bebê, um momento que era para ser tão feliz, mas que incrivelmente vejo levar à separação de casais não emocionalmente preparados para o turbilhão se sentimentos novos que vão enfrentar. E aqui não falo mais só da responsabilidade do homem, mas também da mulher que se afasta, que foge, que não apoia, até mesmo um caso banal, como um marido desempregado.

Como está escrito no livro de Eclesiastes da Bíblia: “Não há nada novo debaixo do sol”. As complexidades dos relacionamentos humanos, os sentimentos, as traições, tudo se assemelha por milênios, de geração em geração, de nação a nação. Podemos nos enganar com a modernidade, com as conquistas (não as desmereço nem digo que não sejam legítimas). Mas viremos a lente da câmera para o outro lado: somos tão diferentes assim de nossos antepassados? De pessoas de outras culturas? Alguns sentimentos e pecados humanos parecem que são primitivos, vou me arriscar a dizer, quem sabe, universais.


   

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