sábado, 25 de março de 2017

Juliete e o psicopata


Juliete encontrou o grande amor da sua vida. Pelo menos era o que ela pensava. O primeiro encontro com Carlos foi ocasional, em um restaurante próximo aos locais de trabalho de ambos. Seguiram-se vários encontros e desencontros nesse restaurante, onde Carlos investia para conquistar o coração de Juliete. Até que seis meses depois, ela finalmente se rendeu aos encantos daquele rapaz envolvente, de descendência alemã.

Juliete era uma menina romântica, como quase todas da idade dela: tinha apenas 18 anos. Carlos era um homem mais experiente, no auge dos seus 30 anos de idade. Enfim, começaram a namorar. Carlos buscava Juliete todos os dias de carro para levá-la ao trabalho. 

O relacionamento seguia sem muitos percalços a não ser por algumas diferenças de objetivo de vida: Juliete era jovem, queria estudar, terminar a faculdade; Carlos já estava com 30 anos, queria constituir família, ter filhos, casa, cachorro e tudo mais. Assim Juliete seguia enrolando Carlos, sempre trabalhando e estudando muito. Queria ser independente, “ser alguém na vida”, pensava. Não queria ser apenas dona de casa. Mas sempre que possível os dois se encontravam, trocavam juras de amor e fidelidade eterna. E como todos os dias, durante o tempo de namoro, Carlos pegava Juliete em casa e a deixava no trabalho.

Carlos trabalhava em uma empresa de logística e transporte de cargas. Juliete estudava análise de sistemas, mas tinha o sonho de um dia se tornar webdesigner. No final dos anos 90 a internet estava em seu auge, o preço das ações das empresas desse setor estava no topo, e essa era uma profissão muito cobiçada. Assim Juliete dava duro e se esforçava. E Carlos, sem mudar de emprego ou ser promovido, comprava seu carro do ano. Depois, comprou uma moto de última geração. Mas nada disso causava estranheza em Juliete. Ou ela preferia não ver sinais de estranheza na vida e no comportamento de Carlos. Ela estava apaixonada, ele era tão carinhoso e dedicado. Por que se preocupar? Bobagem.

Carlos e Juliete eram um casal de namorados quase comum. Iam juntos ao cinema, shows, bares, mas os encontros familiares eram sempre na casa dela. Carlos dizia que tinha vindo de outra cidade e que seus pais já haviam falecido. Ele também oferecia bons jantares, presentes caros, coisas que seu salário não poderia comprar. Em troca, sem perceber, Juliete deixava-se iludir pelas mentiras e ser dominada: estava sempre cercada por um namorado que telefonava com frequência, a levava e a buscava no trabalho, sabia cada um de seus passos, seus amigos e conhecia todos com quem ela se relacionava. Nunca saia de casa sem o avisar e Carlos estava sempre atento à sua amada. “Quanto amor”, Juliete pensava. "Logo terminarei a faculdade e poderemos nos casar."

Mas antes de o planejamento perfeito de Juliete se concretizar, veio uma surpresa inesperada: ela estava grávida, de quatro meses. Como não tinha percebido antes? Óbvio, estava sempre tão focada em ser bem-sucedida profissionalmente, vivia viajando a trabalho, mal tinha tempo para si. E o tempo que sobrava, se dedicava ao Carlos. Mas estava certa de que a notícia não abalaria o relacionamento dos dois. Carlos implorava para ser pai, era seu grande sonho, como ele não poderia ficar feliz?

Juliete encheu-se de coragem e contou ao namorado a notícia do bebê não programado, mas tão esperado. Era uma segunda-feira de manhã. Os dois estavam em frente ao portão da casa dela. As grades brancas combinavam com o cenário amoroso em que Carlos se ajoelhava, beijava a barriga de sua amada e declarava: “finalmente, sou o homem mais feliz deste mundo!”

Na terça-feira, mais um dia de trabalho, Juliete, animada, aguardava Carlos à porta de sua casa, para levá-la ao trabalho. Mas pela primeira vez Carlos não apareceu. Juliete ficou preocupada e foi logo telefonar. Mas o telefone parecia inexistente. Bom, o jeito era ir de ônibus para o trabalho. Estava preocupada, mas tentava se confortar: “deve ter sido uma indisposição, quem sabe, comemorou a notícia do bebê até tarde, bebeu demais”.

Após o trabalho, Juliete foi à casa de Carlos, mas ele também não estava lá. As coisas estavam ficando esquisitas e quanto mais Juliete procurava, mais se via à beira de um ataque de nervos. Não tardaria, Juliete teria o maior choque de toda a sua vida. Carlos havia sumido da face da Terra! “Mas ele queria tanto ter um filho”... Não compreendia. Carlos tinha vendido a casa, o carro, a moto e tudo o que tinha. Ele literalmente sumiu do mapa, sem deixar rastros.

Mas a tragédia não terminaria por aí. Com o apoio da família, Juliete foi até a polícia, informou os números de documentos de Carlos, sua conta corrente, mas nada conferia. Era tudo falso. Carlos não existia. Ele nunca existiu. Nem mesmo amou Juliete sequer uma vez. Ele era um falsário, um psicopata, incapaz de formar laços afetivos. Durante os anos em que conviveu com Juliete, o tal Carlos administrava ao mesmo tempo, outras duas mulheres, que também mantinha sob o seu domínio, e tinha, ao que parece, outros três filhos.

Juliete quis morrer, quis matar, quis se entregar, queria arrancar simplesmente a dor enorme do peito de quem é enganada por um encantador de serpentes, um manipulador habilidoso, incomparável: psicopata. Carlos não existia. Anos de uma doce mentira. O que tinha sido real? Será que ela viveu realmente durante esse tempo com ele? Essas perguntas enchiam a cabeça de Juliete como um turbilhão de pensamentos que faziam a sua cabeça girar. O suicídio parecia o único caminho plausível.  

Até que algo se moveu dentro da barriga de Juliete. Ah, sim, o bebê. “Meu Deus, se eu me matar, vou matar uma criança inocente junto. Melhor esperar até nascer... Quem sabe não dou a sorte de morrer no parto?” Mas o pequeno bebê foi crescendo dentro de Juliete. Era um menino. O enxoval ia sendo preparado e ela começou a sonhar com aquela criança: como seria sua face, seus cabelos, com quantos anos começaria a andar. E se puxasse a personalidade do pai? Juliete tinha que estar lá, acompanhar tudo de perto. Não poderia deixar um “mini-Carlos psicopata” solto por aí.

Na verdade, Juliete recebia de volta o chamado da vida e da responsabilidade primitiva de ser mãe. E do meio das cinzas, da dor e da morte, levantou-se não uma fênix, mas a leoa que existe dentro de cada mãe. Juliete sobreviveu. O menino também, apesar do parto pré-maturo e das inúmeras intercorrências médicas. E formaram uma linda família feliz, com todos os problemas e loucuras (no bom sentido) de uma família mais que tradicional.

É claro que um dia o menino perguntou pelo pai. Juliete queria morrer de novo. Sabia que um dia ele ia fazer essa pergunta. Mas tinha que ser agora? Não estava preparada. A avó, com sua singela sabedoria ajudou. Nessas horas os contos de fada são um importante instrumento lúdico para os pequenos, que ainda não estão preparados para as atrocidades da vida: “seu pai virou uma linda estrelinha e agora está lá no céu. Quando formos para o sítio no fim de semana, longe das luzes da cidade, você vai vê-lo brilhar, lindamente”. E o menino saiu feliz e contente, ansioso para ver o seu pai, lá no céu das estrelas. Uma história do jeito que aquele menino merecia. Juliete ficou preocupada: “Mas mãe?”. “Calma, com o tempo tudo se ajeita, você vai ver. A vida se encarrega, Juliete”.

4 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, existem várias Julietes por esse mundo e que descobrem que contos de fadas não existem e passam a não acreditar no amor, mas eu ainda acredito que exista amor e sinceridade.

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  2. Com certeza, Butterflyblue. Também acredito no amor. Por isso é preciso estar atento aos pequenos sinais... de amor, desamor, violência e até psicopatia rsrs. Abs!

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  3. Excelente texto, extremamente reflexivo... Quantos Carlos pelo mundo, quantas Julietes querendo, consciente ou inconscientemente, querendo encontrá -Los...

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